Era uma vez um jogo de bola. O grande jogo, o super-jogo, o jogo dos jogos, aquele em que se ia decidir qual é que era a melhor equipa do país. O especial deste especialíssimo jogo é que cada uma das equipas candidatas ao título de “a melhor do país” jogava num relvado diferente contra uma equipa diferente. Um jogo à distância e com intermediários, mas o mais emocionante, o mais intenso dos jogos.
Na Catedral da Luz, a história não podia ter começado melhor. Logo a seguir ao “era uma vez” da entrada – no exacto momento, dizem, em que o ponteiro dos minutos tocou no 3 –, Óscar Tacuara Cardozo, o nosso melancólico matador paraguaio, estica o pé, adiantando-se ao defesa do Rio Ave, e toca a bola para o golo 1. “Pronto”, pensámos todos num silêncio síncrono, bem afinado, “vem aí goleada, mais uma festa de futebol-arte e batatas nas redes”. Mas não. O tempo ia passando, os minutos cada vez mais parecidos uns com os outros, e o nervoso a aumentar. No outro estádio, o Braga empata. E depois é o Rio Ave a empatar também. De repente, por uns segundos, até o nosso silêncio desafinou.
O “inimaginável”. Basta a palavra formar-se no pensamento e pomo-nos logo a imaginá-lo. É da nossa natureza. E foi o que aconteceu nesses longos segundos de sofrimento. Por momentos, adeptos e jogadores pensaram nessa hipótese remota, quase impossível e tão injusta: o inimaginável. Imaginaram isso, e o futebol ficou entre parêntesis. Felizmente durou pouco, muito pouco, que os nossos craques, sim, souberam estar à altura da circunstância tramada.
Aimar chuta um daqueles cantos de levezas arquitectónicas, um desses passes niemeyerianos, em recta-curva. Cheio de fé, cheio de estilo carioca, Airton salta para trás e dá de cabeça para a frente. É golo? Não, um defesa corta em cima da linha, que pena. Mas, quê?, é melhor ainda: aparece Cardozo. O nosso Óscar, que precisa de um golo só para ser o rei cá da terra. E Tacuara não treme. Aponta a chuteira paraguaia, atira a redondinha para a vitória.
Campeões, somos campeões. O Glorioso é uma lição de vida, caros amigos: como é difícil e feliz tornarmo-nos aquilo que somos. Campeões, somos campeões.
A revolução benfiquista
Os grandes momentos fazem-nos isto. Obrigam-nos a parar, a respirar fundo, a olhar para trás. Assim, num espírito de Reviver o Passado no Jornal de Notícias, permitam-me que respigue algumas passagens das minhas crónicas futebolísticas deste ano.
Nos calores de Agosto, escrevia aqui o meu eu-de-então: “Jorge Jesus entrou com tudo, exigindo o máximo e prometendo o céu, e a verdade é que vai lançado. Boas escolhas, bom futebol e bons resultados até.” E nem o empate do primeiro jogo (água fria logo de entrada!) fez deste adepto um descrente: “Inaugurar a época com um empate em casa não é brilhante, claro. Mas, pensando no que o Benfica chutou à baliza do Marítimo, também não é nenhuma tragédia.”
No segundo jogo já estava à vista o primeiro actor da revolução benfiquista: “Todos conhecemos a caricatura – o treinador do cabelo branco que vai mudando de tom, o entrevistado dos pontapés na gramática – e, no entanto, por trás disso, arrisco que não é uma personagem nada óbvia que ali está. Será ele até a ‘arma secreta’ do Glorioso deste ano. Por uma vez, permitam-me o trocadilho: é um mistério o nosso mister. (...) O homem é bruxo.”
Começava então a festa desse fenómeno tão raro por cá, um futebol-arte com muitos golos: “Vá, digam comigo, não tenham medo: baile, bailinho, banho, cabazada, espectáculo, carrossel, atropelo, sinfonia, saco de batatas.” Estávamos a jogar muitíssimo, pois, mas o campeonato não seria nenhuma facilidade de favas contadas. “Se fosse tudo muito fácil, tudo de quatro golinhos para cima, não dava gozo nenhum e a história estaria mal escrita. Vencer tem de implicar esforço, surpresa, contrariedade, conquista. Não citarei nenhum grego mas vem em todos os livros.” A verdade é que ainda trememos uma ou outra vez. “Não podemos continuar assim, meus caros, tão dependentes destas pérolas dos nossos astros. (...) O pior que nos podia acontecer nesta altura do campeonato era começar a perder balanço.”
Mas uma boa organização em campo e uma “boa onda” nos espíritos mantiveram-nos sempre focados no primeiro lugar. “Leio num jornal tão sisudo como o Financial Times que grande parte do sucesso norte-americano nos campos da economia se deve ao ‘pensamento positivo’. O sucesso do Benfica também (digo eu).”
Por outro lado, conseguimos não embandeirar em arco. Com alguns dos nossos craques mais modestos, fomos aprendendo “a genuína humildade que há em querer mais, querer sempre mais. A humildade de nos sabermos sempre capazes de melhor e, portanto, não nos darmos nunca por satisfeitos.”
E hoje aqui estamos, caros amigos: campeões, campeões, campeões.
Quem tem dúvidas que um investimento a sério na cultura – numa cultura de exigência e qualidade – ajuda todo o país, economia incluída, que olhe para o Glorioso deste ano. Como se viu nos relvados eternos deste nosso rectângulo europeu, a arte dá alegria, sim, mas também números e vitórias, títulos e multidões.
E agora, claro, queremos mais.
Por Jacinto Lucas Pires in JN
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