quinta-feira, abril 29, 2010

A educação pela arte - João Gobern

Quis Deus e quis a vida que eu não tivesse filhos e que, assim sendo, a herança genética fosse uma conversa acabada. Resta-me - e não é pouco - dedicar uma parte do meu tempo útil a cuidar da transmissão daquilo que, sem presunção nem imodéstia, considero uma éspecie de "herança cultural".
Sabem os meus amigos e familiares com descendência assegurada que gosto de me ocupar daquilo que eles próprios podem designar como "zonas periféricas" da formação dos mais novos. Aquilo que desconhecem - e que eu também não me vejo obrigado a confessar - é que, muitas vezes, é nestas franjas que moram episódios essenciais para o crescimento dos petizes, hoje muito menos separados pela questão do género do que acontecia noutros tempos.
Por outras palavras, e consoante os apetites previamente estudados, gosto de agarrar nos "sobrinhos" e de os levar ao Jardim Zoológico ou ao Oceanário. Ao cinema, via rápida para o sonho. Ao teatro, quando já são capazes de perceber o valor do silêncio. A um espectáculo musical, a um recital, a uma ópera, aproveitando a abertura sem preconceitos que ainda os domina. A um museu, para lhes educar vista e sensibilidade. E, evidentemente, ao Estádio da Luz, preparando-os para a multidão e para a vibração, mostrando-lhes como num jogo do Benfica há coreografias e efeitos especiais (recentemente é assim que olho para as fintas de Saviola e para os arranques de Di Maria), coreografias estudadas e improvisos de génio (Aimar é um belo argumento), música de comunhão e dinâmica de grupo, além de traduções menos rudimentares do que poderia supor-se de Geometria, de Física, de Geografia (componente demográfica na ocupação dos espaçõs livres), de História (e lá estou eu para ajudar a ser cicerone).
Um bom jogo do Benfica é algo que fica gravado para sempre, dipensando todos os outros suportes além da memória emocional. Não será, assim, coincidência que quase todos os "sobrinhos", elas como eles, de recordem dessa jornada gloriosa que, sem meias palavras, incluo no domínio da educação pela arte - uma vez que, mesmo em tempos de crise de identidade, nunca faltaram artistas na Luz, iluminados mas também faróis. Por mim, lembro com mais facilidade aqueles que mereciam outro currículo, jogando como jogaram pelo Benfica: Preud'Homme e Poborsky, Simão e Miccoli, Gamarra e Enke. Acima de todos, João Vieira Pinto. São a prova de que nos corações benfiquistas contam mais o esforço, o empenhamento e o génio do que os títulos que, por várias ordens de razões (e nem todas edificantes), acabaram por não conquistar as serviço do clube que, correcções feitas, prioridades alinhadas, está a voltar ao que se espera: que contagie e empolgue, que alegre e identifique quem o segue. E, se possível, que ganhe - mas sem truques nem malfeitorias.
Por norma, os presentes - os equipamentos, os cachecóis, as bandeiras, o múltiplo merchandising - só vêm a seguir a essa iniciação, ao vivo e a cores. Porque depois da visita, guiada apenas no indispensável e com margem para toda a descoberta pessoal, elas e eles já percebem sem dificuldade o que significa ser do Benfica.
Insisto: é educação pela arte. É um daqueles casos em que a arte vai desaguar direitinha na fé. Depois do "baptismo" e das indispensáveis "confirmações", essa nunca falta.

João Gobern in Mística

1 comentário:

Jotas disse...

Ainda não tinha lido este exto.
Simplesmente genial.